GATILHOS

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GATILHOS

Eu sou a Daniele Castelani, psicóloga e arteterapeuta, e esta é versão em texto do terceiro episódio do podcast IndiviDoando-se — um espaço para reflexões sobre a vida, sentimentos, emoções e humanidades.

Para acompanhá-lo em som, segue o link abaixo:

 

Hoje, quero falar sobre uma palavra que está cada vez mais presente no nosso vocabulário emocional: gatilhos.

Talvez você já tenha dito ou ouvido frases como:

  • “Isso me dá gatilho.”
  • “Nem vou nesse lugar porque é gatilho pra mim...”
  • “Nossa, isso me engatilhou demais.”
  • “Não fala sobre esse assunto, é gatilho pra mim.”

Mas… em algum momento, você já parou para pensar o que são gatilhos e como lidar com eles?
O que realmente acontece dentro de nós quando somos engatilhados?

Hoje, quero te convidar a olhar para esse processo com mais profundidade — trazendo, claro, a psicologia de Carl Jung, um pouco de neurociência e o que mais a minha cabecinha pensar nesse momento...


Vamos lá?

Pensa aí: você já reconheceu algum gatilho na sua vida?
Tem alguma situação que evita porque sabe que não vai te fazer bem?
Algum lugar? Alguma pessoa?

Qual foi a última vez que você se sentiu desproporcionalmente afetado por algo?
Alguma vez você teve uma reação exagerada e só percebeu depois que passou?

Pode ser ficar com muita vergonha — rosto vermelho, corpo queimando —, reagir com grosseria ou raiva, ter um ataque de choro instantâneo... e depois pensar: “Não era tudo isso, mas na hora eu senti como se fosse.”
Já aconteceu com você?

Como você lida quando não consegue fugir da situação que te dá gatilho?
E como lida com a emoção que fica depois?

 

Podemos entender o termo “gatilho” como algo que dispara uma emoção e reação emocional, ou seja, diante de um estímulo — que pode ser um assunto, situação, lugar, pessoa, imagem etc. — acontece uma resposta emocional intensa e muitas vezes desproporcional.

A pessoa pode sentir tristeza, raiva, medo, vergonha... pode até paralisar.
É como se algo muito grande invadisse corpo e mente a partir daquele estímulo.

Quando começamos a usar o termo “gatilho”, significa que já percebemos minimamente que aquele estímulo nos causa desconforto. É quando dizemos:
“Eu tenho gatilho com ___________.” (preencha com o seu gatilho)

Mas você já reparou que, às vezes, algo aparentemente pequeno desencadeia uma reação emocional forte?
O gatilho pode vir de coisas que você não espera e, quando percebe, já está se sentindo mal.

Carl Jung, já falava disso lá atrás, quando falava sobre complexos.
Então, para entender melhor os gatilhos e como eles nos afetam, vamos entrar no universo dos complexos.

 

A teoria dos complexos é uma das mais centrais na psicologia analítica.
Não é à toa que o próprio Jung gostaria que a teoria estudada e escrita por ele fosse chamada de psicologia complexa.
Hoje ela também é conhecida como psicologia junguiana (por conta do nome dele, obviamente), psicologia analítica ou psicologia profunda, mas poucos ainda usam o termo original.

Você provavelmente já ouviu falar de complexo de rejeição, complexo de inferioridade, complexo de abandono... ou até frases como:
“Ah, fulano é muito complexado.”

Tudo isso tem base na psicologia de Carl Jung. Ele estudou profundamente esse tema e trouxe grandes contribuições para compreendermos como funciona.

Na perspectiva junguiana, complexos são conjuntos de emoções, pensamentos, imagens e memórias carregadas de afeto — ou seja, que nos afetam emocionalmente.
Esse conjunto é organizado em torno de um núcleo temático.

Imagine uma bolinha (o núcleo temático; por exemplo: “inferioridade”) e, ao redor dela, várias outras bolinhas circulando — que seriam pensamentos, imagens e memórias relacionadas a esse tema. É como um sistema solar.

Assim, quando uma pessoa passa por uma situação que, de alguma forma, combina com o tema “inferioridade”, esse complexo é acionado.
Por isso Jung dizia: “Nós não temos o complexo, é o complexo que nos tem.”

Ele é ativado automaticamente, com base nas associações que fazemos com aquele núcleo temático, e não temos controle sobre isso.
Se o núcleo entende que a experiência é de inferioridade, ele vai acionar um “botãozinho” interno.
Para quem gosta de animação, o filme Divertida Mente traz uma analogia linda com o painel de controle, as bolinhas coloridas e a forma como memórias e emoções se ligam. Vale assistir (ou rever) depois desse episódio.

É importante entender que o complexo é autônomo — ele funciona do jeito dele, na hora dele, de acordo com o gatilho.
O máximo que conseguimos, às vezes, é tomar consciência dele, o que pode reduzir os danos.
Mas, mesmo assim, ele interfere nos nossos pensamentos, preocupações e ações sem que a gente queira.
Sabe quando você tenta não pensar em algo, mas não consegue? Então...

Sobre complexos, não existe a possibilidade de estudarmos e nos conhecermos a ponto de nunca mais termos esses núcleos temáticos de afeto.
Enquanto houver vida, haverá situações que nos abalam. Sempre!

Por isso, é mais sobre ter autonomia diante da emoção que vem, do que tentar controlar — porque, segundo Jung, não existe essa possibilidade.
(Se tiver dúvidas, volte ao episódio 1, onde explico isso com mais detalhes).

 

Exemplo: o complexo de rejeição

O complexo de rejeição está presente na vida de todos nós — para alguns, em maior intensidade; para outros, em menor.
Ele pode afetar profundamente a autoestima de uma pessoa.

Esse complexo se forma a partir de emoções, memórias e padrões inconscientes relacionados a experiências de abandono, rejeição, não aceitação, exclusão, desvalorização etc.
Assim, quando uma pessoa se depara com uma situação em que se sente rejeitada, o complexo é acionado e ela passa a se sentir mal por não se sentir suficiente.

Repare que eu disse se sentir — e não ser rejeitada.
E é aí que está a parte mais irritante de lidar com complexos: muitas vezes, a rejeição não é real, mas é percebida como real pela pessoa.
O complexo reconhece a experiência como rejeição, mesmo que ninguém tenha, de fato, rejeitado.

Talvez você já tenha conhecido — ou sido — a pessoa que sempre se sente deixada de lado, a última a ser convidada, a que sente que ninguém quer estar por perto.
Muitas vezes, isso não acontece na realidade: as pessoas a chamam, mas, dependendo da força do complexo, ela mesma recusa os convites e depois reclama de não estar nos lugares.

Quando o complexo de rejeição está muito ativado, a própria pessoa, inconscientemente, se rejeita — e, a partir daí, sente-se rejeitada por todos.

 

Uma experiência pessoal

Na época da faculdade, eu vivia exausta. Minha rotina justificava o cansaço, mas meus complexos não queriam saber...
Havia dias em que eu estava péssima, contando moedinhas para pagar a passagem, em pé no ônibus...Já tiveram situações em que, quando dava “boa noite” para o cobrador e ele não respondia, aquilo me destruía,  às vezes eu queria chorar (e não estou brincando).

Com todas as situações que potencializavam minha sensação de inferioridade, eu pensava:
“Eu devo ser a mais inferior das inferiores, nem mereço um ‘boa noite’ diante da minha noite tão ruim.”

Hoje eu rio disso, mas não época eu não tinha essa consciência. Hoje sei que não chorava só de frio ou cansaço, eu chorava pelo acúmulo de preocupações e por uma rotina insalubre.
Meu complexo de inferioridade já estava ativado e situações pequenas, como essa, só reforçavam a sensação. Pequenas situações como essa, engatilhavam e desencadeavam reações emocionais desproporcionais. 

 

A lógica associativa dos complexos

Complexos funcionam por associação: eles se ligam a qualquer situação parecida com o núcleo.
Então, no complexo de rejeição ou inferioridade, episódios como:

  • não receber um “boa noite”,
  • levar um “vácuo”,
  • ser o último a ser escolhido,

automaticamente são associados a esse núcleo e reforçam a reação emocional — raiva, tristeza, vergonha...

Quando isso acontece, não é só a emoção do momento presente: é essa emoção somada a todas as situações parecidas que você já viveu.
É por isso que, às vezes, algo pequeno parece tão doloroso: é como se o passado inteiro viesse junto.

O que acontece no cérebro?

Não é só psiquicamente que as coisas acontecem.
Quando falamos de complexos ativados — ou, num termo mais atual, gatilhos — também estamos falando de fisiologia.
Ou seja: de corpo.

Quando somos engatilhados, nosso cérebro não diferencia passado de presente.
Lembra que eu falei sobre associações? Pois é.
Nessa linha, não há separação entre ontem e agora: tudo vira presente.

A rejeição que você sofreu na pré-escola e a rejeição sentida hoje são processadas como se estivessem acontecendo neste mesmo momento.
Por isso, a reação emocional é tão intensa.

Dentro do cérebro, dependendo do gatilho, um “alarme” é acionado e dispara sinais de perigo para todo o corpo.
E aí, entramos no famoso estado: luta, fuga ou congelamento.
É tudo muito rápido.
Nessa hora, o cérebro busca memórias associadas para encontrar repertório para lidar com a situação.
Mas, quando estamos emocionalmente tomados pelo gatilho, não conseguimos racionalizar o suficiente.

É por isso que não pensamos direito quando estamos engatilhados.


Você provavelmente já viveu isso: sabia a resposta de uma prova, mas, por nervosismo, deu branco.
Depois, longe da pressão, lembrou de tudo.

Pois é: gatilho ativado = corpo e cérebro agindo no modo automático.
Não temos como impedir que esse processo aconteça.
Mas podemos ganhar autonomia sobre o que vem depois.

E isso começa quando passamos a nos observar.

Como lidar com os gatilhos?

Se você tem muitos gatilhos e isso afeta sua vida, saúde mental, relacionamentos e bem-estar, a primeira coisa a fazer é parar de brigar com eles.
Desculpa a sinceridade, mas você sempre vai perder essa briga.

Quer controlar complexos? Nem Jung conseguiu.
Não tem como. No hay como!

Em vez de tentar conter a reação emocional, comece a olhar para os gatilhos como mensageiros.
Eles apontam feridas, dores não curadas, partes de nós que precisam ser acolhidas, vistas e integradas.

Pense nos gatilhos como campainhas que despertam partes adormecidas.

 

O caminho começa quando nos tornamos conscientes.

Para isso, é preciso aprender a não agir imediatamente.
A emoção vem? Sinta. Mas não reaja de pronto.

Respire. Observe.
Deu vontade de xingar, de bloquear, de bater a porta, de chorar?
Pare um instante.
Pergunte-se:

  • “O que dentro de mim está tão ativado por isso?”
  • “Qual parte da minha história está vindo à tona aqui?”
  • “Se o que sinto é maior do que o esperado, o que do passado está acoplado nessa emoção?”

Quanto mais consciente você estiver, maior será sua capacidade de desenvolver recursos para autorregulação emocional.

 

A psicoterapia pode ajudar muito nesse processo, mas não é a única ferramenta.
Você pode meditar, praticar respiração consciente, escrever sobre o que sente, criar arte, se expressar...
Essas práticas ajudam a reduzir o impacto quando o gatilho é ativado.
Estar consciente pode diminuir a força do complexo.

Lembre-se: nada apaga gatilhos ou complexos.
Mas eles podem ser transformados em sabedoria emocional — guias para o autoconhecimento.

 

Depois de ouvir este episódio, sempre que você se sentir engatilhado e com uma reação emocional desproporcional, pergunte:

“O que será que esse gatilho quer me mostrar?”

Quando começamos a escutar e acolher nossa mente e nosso corpo, o sofrimento e o sintoma podem se tornar caminho, bússola, professor.

 

Para encerrar esse episódio, eu desejo que você tenha sabedoria, discernimento e, sempre que possível, serenidade para lidar com situações que despertem dores em você.

E, se perceber que seus gatilhos te afetam mais do que deveriam, te causam sofrimento ou te impedem de seguir com sua vida, não hesite em buscar apoio profissional.

Se este episódio fez sentido para você, compartilhe com alguém que também esteja buscando se conhecer melhor.

Obrigada por me acompanhar até aqui.
Fico à disposição para conversar mais sobre o assunto.

Você encontra meu contato em barbolani.com.br e no Instagram @danibarbolani.psi.

A gente se encontra no próximo episódio.
Beijo!